segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A máquina de Joseph Walser - Gonçalo M. Tavares

Walser é um cidadão vulgar, bem integrado, apesar de usar uns sapatos pouco adequados. É um cidadão que, como tantos de nós, evita o sofrimento através da ocultação de tudo o que se possa parecer com sentimentos. Minto. Nutre sentimentos sim, pela sua máquina e pela sua colecção. A guerra nada lhe diz, nem a mulher, nem a amizade, nem mesmo a morte. Existe uma pessoa no mundo de Walser: ele mesmo. 

A guerra afecta-lhe só no momento em que impede os médicos de atenderem a sua necessidade. A mulher trai-o e sabe que ele sabe, sabe também que ele sabe que ela não pode conviver sempre com a distância que ele criou do mundo. Walser não é daqui, o seu mundo é a colecção, só lá existe algo realmente importante para ele, cada nova peça é uma emoção, essa emoção que ele se recusa a sentir perante as coisas que mexem com as vísceras…não…a colecção não lhe dá desgostos, não implica sofrimentos, não requer uma luta psicológica, não exige que ele aja. A colecção é objectiva, o subjectivo faz sofrer. Não é à toa que ele se sente uno com a sua máquina que lhe come o dedo. Sente-se uno porque ele aboliu o que fazia dele humano e assim, continuando sempre bem integrado, afável, comunicativo, nada que afecte a humanidade das pessoas o afecta a ele, porque é uma máquina, apenas cumpre com as regras estabelecidas, limitando-se a proceder de acordo com os botões que parecem ser ligados na sua mente, o coração já parou. É uma pessoa “como deve ser”, mas não um Homem, um Homem sofre e alegra-se, sente. 

Um dia, a máquina come-lhe o dedo como que avisando de que ele está a ser engolido por algo metálico que o levará todo para um mundo onde os gritos apenas ressoam nas paredes e se tornam gélidos até desaparecerem, até serem nada, como lhe acontece com os gritos da guerra e morte, são nada. Morte essa  a quem ele simplesmente tira o cinto, Isto. é, sem pudor nem estranheza, nem tristeza, nada, ele tira de um soldado morto o seu cinto para arranjar a peça da sua colecção que são pequenas peças metálicas. 

O medo de sofrer leva este personagem a uma vida monótona onde é comandado por todos e tudo, anda ao sabor do vento sem saber que os anos lhe passam. Walser é imensamente triste, mas ele não sabe que o é…talvez o venha a saber no dia em que os seus instintos falarem, quiserem o corpo da viúva do amigo que ele poderia ter salvo da morte e ela não aguente a parte dele que se tornou comprovadamente máquina: o dedo.

4 comentários:

  1. Gonçalo M. Tavares é de uma imaginação delirante. Multiplica-se e não pára, não é, Plasticine? Ainda não cheguei ao fim de Viagem à Índia (vou no Canto VIII), mas é tão invulgar... cada verso é uma revolução em termos de escrita e de ideias...

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  2. José, eu só li este livro, ainda, mas pretendo ler mais...espero que ele tenha mesmo essa imaginação delirante e não que a leitura deste livro tenha sido um golpe de sorte meu ;)

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  3. Plasticine, abandonou o blogue? Às vezes procuro por aqui, mas não tem escrito... que pena..!

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  4. Olá, não abandonei... mas há livros que leio que não me sinto "inspirada" para escrever, outros sim...

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